Mutantes: a irrupção de uma canção periférica alvissareira. Artigo de Faustino Teixeira

A primeira formação da banda em 1969. Da esquerda para a direita: Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias. (Foto: Domínio Público)

30 Setembro 2023

"Para quem quer conhecer a Música Popular Brasileira em toda a sua beleza e complexidade, não há como relativizar a força da presença dos Mutantes, e de Arnaldo Baptista e Rita Lee. O trio paulista deixou para nós um selo de qualidade que enaltece o trabalho da música brasileira e nos apresenta uma faceta do rock nacional que não pode ser deixada de lado", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Eis o artigo.

Introdução

Um dos singulares estudiosos dos Mutantes no Brasil, o professor Eduardo Losso, indicou com pertinência que essa banda tão especial para nós aqui dos trópicos, traduz algo de particularmente excepcional no roque brasileiro, e mesmo mundial, dando um colorido tropicalista único ao campo da música popular brasileira. Revela que em particular os três primeiros LPs do trio, constituem “um feito único num país periférico”.

Suas palavras são elogiosas, e seu trabalho técnico na análise das canções dos primeiros álbuns da banda, e em particular do segundo, é pioneiro. Tem razão quando diz que o trio constitui “o melhor e o mais reconhecido grupo de roque brasileiro no mundo”. Ele sublinha ainda que, infelizmente, são ainda raros os estudos especializados no Brasil dedicados à reflexão sobre o trabalho criativo e inaugural dos mutantes.

Não é minha pretensão aqui exercer essa tarefa, mas ao menos buscar irradiar minha reflexão particular, com base nas leituras realizadas, e sublinhar a riqueza do trabalho feito pelos Mutantes em prol da música brasileira.

No clima da tropicália

Em análise preciosa sobre o trabalho musical de Arnaldo Batista, Francisco Bosco pontua que os Mutantes nasceram no clima propício de tropicália, com muitos traços em comum, mas trazendo peculiaridades que são também distintas e significativas. Ele nos mostra que “o desígnio tropicalista era, portanto amplo, complexo, crítico e em larga medida consciente. Tudo isso o diferenciava tanto da jovem guarda quanto dos Mutantes”. Segundo Bosco, dentre os traços que diferenciam os Mutantes está “o princípio paródico”. Não há sinais de intelectualismo ou reflexão propriamente crítica nas canções do trio, mas a anarquia e a irreverência. Como indicou Bosco, o trio não buscava “transformar a realidade”, mas descontextualizar seus elementos, transformando a realidade desde dentro, com os toques de inocência e infância. Se há que falar em presença na realidade, ela se dá sem aderência ou resistência, e forma peculiar, com leveza e um jeito particular e lúdico de anarquismo.

Para entender os Mutantes se faz necessário situá-los no contexto da Tropicália. A peculiaridade da Tropicália, em meados do final da década de 1960, era trazer uma palavra nova, mas também capaz de recuperar traços diversificados com uma estética toda particular. Os ideais revolucionários estavam em processo de crise, e o Tropicalismo revelou novas possibilidades, de uma abertura novidadeira. Os tropicalistas “aproximavam uma leveza engraçada vinda da cultura popular de uma sofisticação grave da poética nobre. Nisso, afrontam a hierarquia de valores bem assentados na sociedade”. Traziam igualmente uma estética inovadora com recurso a “outras dicções” e outras roupagens, que incluíam a sátira, o humor e a ironia. A diversidade se fazia notar inclusive nas capas dos LPs, com a irreverência apresentada pelos álbuns dos Mutantes, bem diversa da estética de um João Gilberto, por exemplo.

Os tropicalistas recuperavam, a seu modo, o ideal antropofágico, sem maiores pudores de aproveitar e devorar o mundo da diversidade. Como indica Pedro Duarte, eles “citariam a Coca-Cola em suas letras, aceitariam o ritmo do rock e importariam seus instrumentos para a música popular brasileira”. Trata-se de uma “antropofagia de tom romântico”, que inclusive não reprime em suas letras e em sua estética os componentes da sociedade de consumo.

No LP Tropicália, de 1968, no mesmo ano em que saía o LP de Geraldo Vandré, com sua música de protesto (Canto Geral), é expressão viva de um novo momento, com destaque para duas canções: “Panis et circenses”, de Caetano Veloso e “Geleia geral”, com música de Gilberto Gil e letra de Torquato Neto. Na letra, o projeto nascente vinha desfraldado:

“Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geleia geral brasileira
Que o jornal do Brasil anuncia (...)”.

Geleia Geral tornou-se, em verdade, uma “canção manifesto”, o hino mais singular da Tropicália, com o vivo elogio à cultura brasileira, com seus traços híbridos e múltiplos. Trazia ainda consigo uma dimensão de reação crítica a um tempo de repressão. A expressão Geleia Geral teve sua origem num verso de Décio Pignatari. Podemos ainda citar a canção “Bat Macumba”, no mesmo LP mencionado, com seu traço de deboche.

Com o tempo, os Mutantes vão se descolando da Tropicália e traçando um rumo particular. Como aponta Dirceu Soares, em artigo publicado na revista Realidade, de junho de 1969, os Mutantes acabaram abandonando os baianos, buscando um caminho próprio, com suas canções e arranjos específicos. Os irmãos Arnaldo e Sérgio, junto com Rita Lee apostaram num caminho alternativo e ousado, num desafio de comporem nos fins de semana músicas de um repertório diverso. E assim ocorreu.

A formação dos Mutantes

Nascidos numa família de pais liberais, os irmãos Arnaldo, Sérgio e Cláudio César Baptista, moravam num casarão no bairro da Pompéia, em São Paulo e ali era um espaço de muita vida musical. Eles nasceram no final da década de 1940 e inícios de 1950: Cláudio Cesar Dias Baptista, em 06 de maio de 1945, Arnaldo Baptista, em 06 de julho de 1948, Sérgio Dias Baptista, em 01 de dezembro de 1951. Cláudio Cesar vai ser conhecido como o quarto mutante, em razão de seu trabalho na construção dos instrumentos elétricos utilizados pela banda. Os meninos, que já tocavam guitarra desde adolescentes, eram amigos de Rita Lee, nascida em 31 de dezembro de 1947. Era também uma menina com vocação musical, herdando de sua mãe a ligação com a música, e do pai, dentista, a afeição pela música sertaneja.

A primeira experiência musical dos garotos ocorreu no The Thunders (Os Trovões), e tocavam em festinhas de colégios e em igrejas do bairro de Pompeia. Um passo importante na experiência musical dos irmãos, foi o impacto causado pela primeira audição dos Beatles, em 1964. Se antes eram admiradores dos Ventures e dos Shadows, tornaram-se, rapidamente, fiéis admiradores da banda inglesa: “Agora deparavam-se com quatro inglesinhos que queriam mudar tudo, até os cabelos, numa época em que o corte oficial de cabelo era o americano (bem raspado atrás, quase como o dos militares) (...). O twist instrumental estava com seus dias contados”.

A primeira audição dos Beatles causou perplexidade, mas logo em seguida veio uma admiração profunda, e os irmãos logo aderiram à “nova onda”. A paixão de Arnaldo era pelo baixo e de Sérgio pela guitarra. O apreço de Rita Lee era pela bateria, rompendo com o desejo de seus pais para que ela se dedicasse ao piano. Desde cedo rebelde, Rita Lee fugia pela janela de sua casa para tocar bateria e banjo com os amigos de Vila Mariana, em São Paulo. Ela chegou a estudar com Magdalena Tagliaferro, mas não foi adiante. O encontro entre Arnaldo e Rita Lee ocorreu em 1964, no Teatro João Caetano. Rita Lee era na ocasião vocalista do Teenage Singers e ele baixista do The Wooden Faces. Dali nasceu uma amizade duradoura, e juntos integraram uma nova banda de rock: Six Sided Rockers, que chegou a se apresentar na TV Record, com músicas covers, em programas como a Jovem Guarda. As canções dos Beatles fazia parte do repertório central do grupo.

No ano de 1966, a banda ganha um novo nome, O'Seis, chegando a gravar um compacto. Nessa ocasião Arnaldo e Rita Lee começaram a namorar. Depois de dissolvido o grupo é que nasceu o nome de Mutantes, sugerido pelo cantor Ronnie Von, e assim se apresentaram no tradicional programa do cantor na Tv Record, em 15 de outubro de 1966, revelando-se como a grande novidade do programa. Na ocasião já era um trio, formado pelos irmãos Arnaldo e Cesar, acompanhados por Rita Lee. Foi a partir desse programa que o grupo foi ganhando visibilidade, sendo convidado para participações em outros programas da emissora, entre os quais o de Hebe Camargo. O casarão na Pompeia torna-se o espaço dos ensaios do grupo, para o desconforto da vizinhança, em razão do alto volume nos ensaios do grupo, que ocorriam muitas vezes num estúdio de Claudio Cesar, localizado no fundo do quintal, espaço onde ele fabricava instrumentos musicais.

Foi nesse contexto de sucesso do grupo que veio o convite de Gilberto Gil para que o grupo o acompanhasse numa canção que concorria no III Festival da Música Popular Brasileira. O título da canção era “Bom dia”, de autoria do próprio Gil. Os Mutantes começaram a frequentar, já no início de 1968, os encontros musicais em apartamento no Hotel Danúbio, com a turma da Tropicália. Em encontros que reuniam Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto, Tom Zé, Gal Costa e o maestro Rogério Duprat, os Mutantes passaram a se sentir à vontade.

Algo de relevante começava a surgir daqueles encontros: “Espalhados pelo sofá, ou sentados no chão em volta de uma mesinha retangular, uns mostravam para os outros suas últimas canções, tocavam, cantavam, ofereciam e recebiam palpite, discutiam e planejavam seus próximos passos musicais”. Havia um desnível de idade entre os jovens dos Mutantes e a turma mais velha da Tropicália, que era também cultural, mas isso não importava muito. Os baianos foram tomados pela “vivacidade adolescente e a alegria iconoclasta dos Mutantes” que acionavam neles ideias diversificadas. O maestro Duprat também se encantou com a “maluquice musical” do trio mutante, e vínculos importantes foram criados a partir de então, com participação do grupo em gravações organizadas pelo maestro. Desses primeiros encontros do trio com a turma da Tropicália, é que nasceu o convite para a participação nos festivais da MPB.

A presença dos Mutantes nos Festivais

O maestro Rogério Duprat, que já vinha de experiência com música eletrônica, firmou uma bonita amizade com Gilberto Gil e se tornaram parceiros. Ele teve a intuição profunda de que o encontro de Gil com os Mutantes abria horizontes novidadeiros. Foi algo que ele sentiu como revigorante. Foi assim que nasceu o convite de Gil para que o trio o acompanhasse no III Festival da Record, em 1967, quando interpretou a canção “Domingo no Parque”, de sua autoria. Ocorreram vaias no início da apresentação de Gil, mas o baiano foi conquistando aos poucos ao longo do desenvolvimento da apresentação. Foi uma canção que deslumbrou os jurados. Ela ficou em segundo lugar, sendo ultrapassada por “Ponteio”, de Edu Lobo, que veio acompanhada pelo Quarteto Novo.

No livro de Renato Terra e Ricardo Calil, que aborda o grande acontecimento que foi o Festival da Record, em 1967, há o reconhecimento de que a apresentação de Gilberto Gil foi “gloriosa em todos os aspectos”. O arranjo de Rogério Duprat foi fantástico, recorrendo a ideias que vinham das orquestrações dos Beatles, e recorrendo a conjunções impensáveis na ocasião como o berimbau e a guitarra elétrica, mas igualmente a estética que acompanhou o visual dos músicos e de Gil. A canção de Gil era um “baião muito bem elaborado, com determinados aspectos, com determinadas mudanças, achados, encaminhamentos da melodia”. Foi algo, assim, espetacular e uma apresentação única.

Há uma cena curiosa que envolve os Mutantes no III Festival Internacional da Canção (FIC), no ano seguinte, em 1968, quando a performance do trio, com suas distorções sonoras e ruídos no início da canção interpretada por Caetano Veloso, “É proibido proibir”, recebeu uma tremenda vaia do público, e um segmento da plateia virou as costas para o cantor. A atitude provocou, por sua vez, uma reação irreverente dos Mutantes, que acompanhavam o cantor, que viraram de costas para o público. Na sequência, ocorreu o clássico discurso de protesto de Caetano Veloso, quando disse: “Mas é isso que a juventude que diz que quer tomar o poder? (...). Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”.

Em suas participações em Festivais, os Mutantes chegaram a apresentar uma canção, “Caminhante noturno”, de autoria de Arnaldo Baptista e Rita Lee, no mesmo FIC, de 1968, alcançando o sexto lugar, com a surpresa do prêmio de melhor interpretação no Festival. Com singularidade, a presença de Rita Lee no palco com um vestido de noiva que foi utilizado por Leila Diniz numa novela na novela da Globo, “O Sheik de Agadir”. Ela conseguiu por empréstimo, mas nunca devolveu. No artigo já mencionado de Dirceu Soares, em livro sobre a Tropicália, ele comenta que quando os Mutantes foram à França, em Cannes, e apresentaram essa canção, a crítica elogiou muito a música, comparando-a com as preciosidades dos Beatles e do The Mamas and The Papa's, mas com “um jeito todo brasileiro de cantar”.

Pode-se ainda registrar a presença dos Mutantes no IV Festival de MPB da Record, em 1968, interpretando uma canção de parceria de Rita Lee com Tom Zé, ficando em quarto lugar. Os dois tinham se conhecido nos clássicos encontros no Hotel Danúbio, naquele momento de gênese da Tropicália. A música tinha como título “Astronauta Libertado”, e depois foi nomeada como “2001”, por sugestão de Guilherme Araújo. Era uma canção singular, que ganhou o apreço de Caetano e Gil, antes de sua apresentação oficial no Festival.

Os Álbuns dos Mutantes

Os Mutantes produziram sete LPs, a começar pelo primeiro, lançado em junho de 1968, que tinha como título Os Mutantes. Dentre as 11 músicas do LP, a presença de “Panis et Circences”, “Baby”, “A minha menina” e “Bat Macumba”. No segundo LP, cujo título era “Mutantes”, estavam presentes outros clássicos como “Dom Quixote”, “Não vá se perder por aí”, “2001”, “Banho de Lua” e “Caminhante Noturno”. Foi um disco concebido em uma semana e meia, no final de 1968, o que é impressionante. Foi lançado em 1969. Na capa do LP vemos Rita Lee com o famoso vestido de noiva de Leila Diniz. Como curiosidade da gravação deste segundo LP, a malandragem do trio ao final da música “Dom Quixote”, onde Chacrinha vem citado e um violino faz uma citação de “Disparada”, em clara ironia a Geraldo Vandré. Na direção do disco estava Manoel Barembein.

O terceiro LP, cujo título é A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, teve Arnaldo Saccomani na direção da produção, sendo lançado nos tempos difíceis da ditadura militar, em 1970. Na capa, uma foto impressionante de Arnaldo Batista saindo de um túmulo. Dentre as canções estão “Ando meio desligado”, “Desculpe Baby”, “Hey, boy”, “Preciso urgentemente encontrar um amigo”, “Haleluia”. O grande destaque do álbum está presente na faixa título, “Ando meio desligado”, que traduz uma clara menção ao ritmo de experimentação psicodélica do período, e que escapou imune do olhar crítico da censura. Na faixa 3, temos a canção “Ave, Lúcifer”, de autoria de Arnaldo Batista e Rita Lee. É uma canção que fala no “éden infernal”, com anjos e arcanjos, em flecha do selvagem, em serpente traiçoeira e o “Lúcifer da floresta”. Essa canção veio analisada pormenorizadamente por Eduardo Losso em artigo publicado na Revista Cultura Brasileira Contemporânea, da Fundação Biblioteca Nacional, em novembro de 2006. Segundo Eduardo, a canção parece estar ambientada em estranho paraíso, com uma sonoridade que remete ao cinema ou à ópera, com feições impressionista e orientalizante. Na visão de Eduardo, é um tempo extremamente rico da banda, com arranjos singulares de Rogério Duprat e o vivo ecletismo do trio, “num de seus melhores momentos”.

No quarto álbum, Jardim Elétrico, é o momento onde o trio manifesta mais vivamente a sua ironia e deboche. Com produção de Arnaldo Batista e capa psicodélica de Alain Voss, o LP foi gravado em novembro de 1970 e lançado no mercado em março de 1971. Parte do disco foi gravado em estúdio francês, aproveitando a turnê feita pelo grupo no país europeu. A faixa de abertura, “Top top”, já vem carregada de sarcasmo e irreverência. Tornou-se um grande sucesso, retomando uma metáfora utilizada pelo cartunista Henfil. O mesmo ocorre em outras composições como “Tecnicolor”, bem psicodélica, e “El Justiciero”, onde o trio brinca com os heróis da esquerda latino-americana. Na faixa “Portugal de navio” há a sugestão de um palavrão: “E hoje eu vou te mandar pra Portugal de Navio”.

No quinto álbum, Mutantes e seus cometas no país do Baurets, lançado em 1972, há uma homenagem a Tim Maia, que criou a expressão “Bauretz” num encontro com o trio em um show em Bauru, no estado de São Paulo. O grupo buscava descolar um baseado, e Tim Maia indagava: “Cadê o baurets de baurutuz?”. O LP remete a tempos de boa convivência com o cantor carioca. O álbum foi produzido por Arnaldo Batista, com capa de Alain Voss. Dentre as canções: “Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and roll”, “Vida de cachorro”, “Rua Augusta”, “Cantor de Mambo” e “Balada do Louco”, uma das mais conhecidas e irradiadas, composta por Rita Lee e Arnaldo Baptista:

“Dizem que sou louco
Por pensar assim
Se eu sou muito louco
Por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz
Não é feliz (...)”

Em análise preciosa da canção, Eduardo Losso indica que os autores da letra tiveram uma extrema “habilidade retórica” de trabalhar com o dado da imaginação. Mediante essa ferramenta da mente, as pessoas podem se sentir poderosas diante dos donos do poder. É toda uma letra, confirma Eduardo, que sustenta a vitalidade da imaginação em derrubar muros e legitimar a possibilidade de uma vida não amarrada aos padrões burgueses. Na verdade, é uma canção que celebra o delírio da imaginação, uma “brincadeira hippie” que consagra a possibilidade de um outro mundo, regido agora pela força da imaginação. Essa crítica já estava vivamente presente na canção “Panis et circenses”, do primeiro álbum, quando se procede a virulenta crítica às pessoas burguesas acomodadas na “sala de jantar”, cuja ocupação precisa é “nascer e morrer”.

O sétimo álbum, Tecnicolor, é de 1970, mas só foi lançado em 1999. Foi fruto de um achado do jornalista Carlos Calado, em entrevista feita com o artista plástico Antonio Peticov, na preparação de seu livro sobre os Mutantes. Soube que o artista tinha em seu poder a cópia de uma gravação da banda, provavelmente gravado na Europa. O trabalho foi então lançado 29 anos depois, aproveitando o sucesso do grupo junto aos novos roqueiros internacionais. Foi com Antonio Peticov, que o trio fez sua primeira experiência com o LSD. O álbum foi produzido por Carl Holmes, e o grupo agora contava com a presença de Liminha (Arnolpho Lima) e Dinho (Ronaldo Leme). O último álbum, “Mande um abraço pra velha”, de 2014, é uma coletânea do grupo, sendo quatro faixas do álbum do maestro Rogério Duprat, grande admirador da banda.

Mesmo sem a presença de Arnaldo e Rita Lee, o grupo ainda permaneceu em cena, com Sérgio Dias, Dinho e Arnolpho Lima (Liminha), e contaram com uma nova presença: Túlio Mourão. Juntos gravaram Tudo foi feito pelo sol, em 1974. O álbum alcançou a marca de 30 mil cópias. No ano anterior, os Mutantes tinham produzido o álbum O A e o Z, que só foi lançado em 1992.

Como se pode perceber, os Mutantes alcançaram grande sucesso, com presença no cenário internacional. Bandas como a Red Kross e a L 17 manifestaram sua admiração pelo grupo; assim como grandes nomes do rock internacional como Ken Stringfellow, vocalista dos Posies. Em sua visão, os Mutantes revelavam um sonoridade única, que irradiam com criatividade sons que procedem de diversos lugares, com presença transformadora no rock psicodélico inglês e americano. Outro grande admirador do grupo foi Kurt Cobain, do Nirvana, que suicidou-se em 1994.

Assim como ocorreu com outras bandas de rock, os Mutantes também enfrentaram uma grave crise a partir de 1969. O ambiente vigente no grupo foi se tornando cada vez mais insustentável, corroborado pelo abuso das drogas e brigas internas, que envolveram também a relação de Arnaldo Baptista e Rita Lee. Como mostrou Carlos Callado, “com o tempo, porém, o tom romântico do casal começou a desafinar”. Os desdobramentos que se seguiram depois que o grupo resolveu morar na Serra da Cantareira, foram bem problemáticos. Ali o grupo já estava “meio desligado” do tempo, envolvido com ufologia, astrologia, magia e ocultismo em geral, além do pesado ritmo das drogas. Era o tormento que pagavam pela sede de uma liberdade absoluta e radical carência de limites. Como se realizasse o que estava previsto no álbum de 1970, os Mutantes começaram a se desligar, perdendo o contato com o chão. Como apontou Francisco Bosco, “começava ali uma passagem da infância, não à maturidade, mas a uma crescente evasão da realidade. Nas canções do grupo, o humor vai cedendo lugar a um misticismo lisérgico que se revela tanto nas letras quanto nas músicas”.

Os desentendimentos no grupo relacionavam-se também com a dificuldade de alcançar públicos maiores. A insatisfação de Rita Lee foi crescendo, a ponto de não mais conseguir permanecer com a banda. Dizia que estava cansada de ser “o John Anderson da banda”, em clara referência ao cantor do Yes. Rita passa a ser um peso para o grupo, e Arnaldo Baptista chega mesmo a sinalizar que que ela não tinha mais lugar na banda. Os interesses musicais não eram mais comuns, e a banda inclinava-se cada vez mais na direção do rock progressivo. Esta talvez seja a razão mais plausível para a decisão de Rita deixar o grupo.

Rita Lee foi ficando cada vez mais frágil e deprimida, chegando mesmo a pensar em largar a música. Por sua vez, Arnaldo cada vez mais estranho e diferente, e mais suscetível ao poder das drogas. Evidenciava-se que ele “não tinha estrutura psíquica para tomar LSD todos os dias”, além de outras drogas como a mescalina e cocaína. Era “como os seus versos da 'Balada do Louco' tomassem forma, Arnaldo começou a acreditar que era um Deus”. Rita percebia que Arnaldo não estava bem. Foi quando então ela começou a afastar-se dele, até a separação final. Num dos gestos estranhos de Arnaldo, ele leva para a Cantareira uma estátua de pedra, de um anjo de 1,5 metros de altura, provavelmente roubada de um cemitério paulista. Rita Lee não deu conta de acompanhar toda essa “viagem” de Arnaldo.

A crise instaurada acabou provocando as saídas de Dinho e Liminha. Mesmo Sérgio Dias foi perdendo o ânimo, buscando novos caminhos musicais, até instalar-se depois nos Estados Unidos. Sem nunca romper com o sonho de um reencontro da banda, Sérgio relata que o maior problema que marcou a vida dos Mutantes foi o “romance eterno e inacabado do Arnaldo e da Rita”.

Os caminhos de Rita Lee e Arnaldo Batista diversificaram-se. Ela buscou uma carreira solo, que se mostrou exitosa, a começar pelo disco Build Up, de 1970. Por sua vez, Arnaldo Batista afundou-se numa melancolia, sobretudo após a separação de Rita Lee, em 1977. Daí em diante, a dor foi tomando o artista, a ponto dele buscar uma saída definitiva em tentativa de suicídio ocorrida em 1982, quando tinha 33 anos, justamente no dia do aniversário de Rita Lee. O gesto radical provocou uma imensa dor na cantora, que já estava junto ao seu novo companheiro, Roberto de Carvalho. Mais tarde, no documentário Loki, de 1975, ele dirá que o que buscou não foi a morte, mas a fuga do hospital em que estava internado.

Do salto no escuro a uma nova infância

Depois da ruptura com Rita Lee, Arnaldo Baptista passou por vários momentos difíceis de depressão, com cinco internações hospitalares, sendo a última, no final de 1982, por iniciativa de sua mãe. O salto no escuro ocorreu no final do ano, justamente no aniversário de Rita Lee, no dia 31 de dezembro. Como disse Lobão no documentário Loki, Arnaldo, na verdade, “estava querendo fugir daquele tipo de coisa”. Arnaldo mesmo comenta, no mesmo documentário: “Eu me vi perdido na vida, internado 5 vezes. Então plenamente consciente e cansado de falar com os médicos, cansei disso e pensei: 'Eu vou me ver livre. Me joguei da janela. Eu vi o réveillon e pensei: eu vou comemorar o aniversário de quem me internou pela primeira vez e me botou no arquivo médico. Então eu me joguei. Eu sabia que estava jogando o jogo mais alto que existe, a vida. E deu no que deu. E parece um milagre. De repente, eu acordei na cama de minha menina (Lucinha)'”.

Em razão de sua queda, Arnaldo teve um edema cerebral e outro pulmonar, além de inúmeras costelas fraturadas e lesões por todo o corpo. Ele passou por um longo tratamento, que se iniciou a partir do coma. Perdeu cerca de 30 quilos em sua internação, saindo do hospital em cadeira de rodas, em 7 de maio de 1982. No hospital contou com a preciosa ajuda de uma fã, Lucinha, que o acompanhava desde a época dos Mutantes. Sem poder contar com a ajuda da família, Arnaldo foi acolhido por Lucinha, que esteve junto dele todo o período de sua recuperação, e depois levou-o para Juiz de Fora, onde ainda residem, numa chácara um pouco afastada da cidade.

Antes do acidente, Arnaldo Baptista tinha dirigido e produzido um álbum que já estava para ser lançado naquele período. Era o Singing Alone, de 1982, com todas as músicas de autoria de Arnaldo Baptista. O álbum veio depois remasterizado em 1995. Trata-se de um trabalho de grande beleza, mas também envolvido por uma dor profunda. Entre as canções, a “Balada do Louco”, “I Fell In Love One Day”, “Train”, “Corta-Jaca”, “O Sol” e “Hoje de manhã eu acordei”. Nessas duas últimas canções, deparamo-nos com letras de grande melancolia. Na letra de “O Sol”, Arnaldo sinaliza sua vontade de “ver nascer o sol”, e “apoiado num céu genuíno, estrear no carnaval”. Lamenta ainda a ausência de pessoas no seu quintal. A sede do sol retoma na canção “Hoje de manhã eu acordei”, quando lança seu profundo anseio de ver o arco-íris.

Antes do álbum de 1982, Arnaldo Baptista fez um viagem pela Europa, quando então nasceu a inspiração para fazer novas canções, que resultaram no álbum Loki, em 1975. O álbum inteiro foi gravado sob o efeito de LSD. Arnaldo contou com a preciosa ajuda de Roberto Menescal, que na época era o diretor artístico da Polygram. Ele resolveu assumir a produção do trabalho. Arnaldo entrou no estúdio Eldorado, em São Paulo, no final de 1974, contando com a presença dos companheiros dos Mutantes, Dinho e Liminha (bateria e baixo). O trabalho foi realizado em 16 canais. O álbum tem músicas singulares, emocionantes, como “Será que eu vou virar bolor?” e “Desculpe”. Essa última soa como uma despedida, de alguém buscando ardentemente sua glória. Segundo o jornalista e pesquisador Bento Araújo, o álbum vem definido como “um disco em que 'Arnaldo caminhou pela fina linha que divide o amor e o ódio, a genialidade e a loucura'”.

Junto com esses dois álbuns citados, podem ainda ser destacados outros, como Let It Bed, produzido por John Ulhoa, com gravações realizadas em 2002, na casa de Arnaldo Baptista, em 2003, no Andar Estúdio de Belo Horizonte, e ainda uma canção gravada ao vivo em fevereiro de 1981 no TUCA, em São Paulo. Dentre as canções, “Gurum Gudum”, “L.S.D”, “Bailarina”, “Deve ser amor”, “Cacilda” e outras. Há também os dois trabalhos realizados em parceria de Arnaldo Baptista com a Patrulha do Espaço: Faremos uma noite excelente ao vivo, em 1978 e Elo Perdido + Elo mais que perdido. Esse último trabalho, de 1996, é precioso com interpretações maravilhosas como “Oh trem”, “Corta Jaca”, “Sentado ao lado da estrada” etc.

Em 2008 saiu o esplêndido documentário Loki, dirigido por Paulo Henrique Fontenelle e produção executiva de André Saddy, com fotografia de Marco Moreira. O documentário de 120 minutos ganhou reconhecimento, sendo escolhido como o melhor documentário do Festival de Cinema Brasileiro de Miami (júri oficial), bem como o melhor documentário do Festival do Rio, no voto popular. O estudo mais importante realizado sobre esse documentário é de autoria de Francisco Bosco, e está no livro E livre seja este infortúnio, de 2010. Bosco relata com intensa sensibilidade todo o processo que envolveu a produção do documentário, que saiu em DVD. Ele discorre sobre as imagens que acompanham o trabalho, onde aparece o Arnaldo

“que não é aquele da primeira inocência dos anos 1960, tampouco aquele melancólico que atravessou os 70. Seu rosto adquire uma expressão permanente de inocência, mas uma inocência tardia, como que alheada, sem vitalidade. Sua voz, seu jeito de falar, seus gestos, tudo nele se torna extremamente delicado”.

A câmara passeia pela chácara em Juiz de Fora onde ele vive com sua companheira Lucinha, com imagens belíssimas. As músicas presentes no documentário são simplesmente esplêndidas, tratadas com um merecido cuidado e esmero. Bosco nos remete a uma imagem “que se repete e vai ganhando extraordinária força conceitual. De dentro da chácara, Arnaldo olha para uma janela. Lá fora, uma árvore está parada, indecifrável, com seus verdes, quase colada a ela”. Já ao final do documentário, em cena que Arnaldo, abraçado a Lucinha, fecha a janela, percebemos com clareza que ela

“é o ponto de passagem entre a realidade e o real. A casa, com seus objetos reconhecidos, sua humanidade, é o espaço da realidade; a árvore, natureza irredutível, intratável, é o real. É como se, ao ter deixado para trás a realidade, nos lisérgicos anos 1970, Arnaldo tivesse passado os anos seguintes sendo ameaçado, espreitado pelo real – sem entretanto poder alcançá-lo. A realidade é o que protege o real”.

Há uma passagem sublime no documentário, quando Arnaldo, em sua singeleza de criança relata que “muitas vezes o lado triste é mais comovente que o lado alegre, sorridente. Então, nesse sentido, a tristeza me coloriu”. Alguém diz no documentário que Arnaldo representa “a arte em si”. O grande maestro e arranjador, Rogério Duprat, também deixou seu testemunho em Loki: “Os Mutantes foram a coisa mais importante do Tropicalismo. Ninguém conseguiu deixar isso claro. E o Arnaldo, eu sei bem disso, talvez nem todos saibam, mas eu sei bem disso, que a cabeça disso tudo, a cabeça dos Mutantes, era o Arnaldo Baptista. Ele é o responsável por quase tudo o que aconteceu no Brasil de 1967 pra frente”.

Para quem quer conhecer a Música Popular Brasileira em toda a sua beleza e complexidade, não há como relativizar a força da presença dos Mutantes, e de Arnaldo Baptista e Rita Lee. O trio paulista deixou para nós um selo de qualidade que enaltece o trabalho da música brasileira e nos apresenta uma faceta do rock nacional que não pode ser deixada de lado.

Notas

[1] Disponível aqui. (acesso em 14/09/2023).

[2] Francisco Bosco. E livre será esse infortúnio. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 131 (Canções da inocência e da experiência),

[3] Ibidem, p. 133-134.

[4] Pedro Duarte. Tropicália ou Panis et Circences. O livro do disco. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018, p. 105.

[5] Ibidem, p. 103.

[6] Ibidem, p. 124.

[7] Carlos Renó. (Org). Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 105.

[8] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 144.

[9] Dirceu Soares. O mutantes são demais. In: Fred d'Orey; Sérgio Cohn; Frederico Coelho (Orgs). Tropicália. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 203 (Série Encontros).

[10] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 40.

[11] Chris Fuscaldo. Discobiografia Mutante. Álbuns que revolucionaram a música brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Garota FM Books, 2020, p. 24.

[12] Apesar dos inúmeros entreveros que marcou a relação entre os dois, eles acabaram se casando em 30 de dezembro de 1971.

[13] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 84-89.

[14] Ibidem, p. 113.

[15] Ibidem, p. 118.

[16] Ibidem, p. 103.

[17] Foi algo semelhante ao que ocorreu com Caetano Veloso, na apresentação da música “Alegria, Alegria”, no mesmo festival, que também começou sendo vaiado, e aos poucos conquistou o público, sendo ovacionado no final.

[18] Renato Terra & Ricardo Calil. Uma noite em 67. São Paulo: Planeta, 2013, p. 37.

[19] Ibidem, p. 37-38.

[20] Ibidem, p. 21.

[21] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 139.

[22] Dirceu Soares. O mutantes são demais, p. 211.

[23] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 146-147.

[24] Foram sete LPs com a presença do trio original.

[25] Foto de Cenyra Arruda.

[26] Eduardo Guerreiro B.  Losso. Elogio à megalomania pop: culto do eu e delírio auto-irônico na balada “Balada do Louco”. Cultura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro,  Ano 1, n. 1, novembro de 2006, p. 76-79.

[27] Ibidem, p. 77.

[28] O mesmo título da canção da faixa 8.

[29] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 146-147.

[30] Foram sete LPs com a presença do trio original.

[31] Foto de Cenyra Arruda.

[32] Eduardo Guerreiro B.  Losso. Elogio à megalomania pop: culto do eu e delírio auto-irônico na balada “Balada do Louco”. Cultura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro,  Ano 1, n. 1, novembro de 2006, p. 76-79.

[33] Ibidem, p. 77.

[34] O mesmo título da canção da faixa 8.

[35] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 332.

[36] Ibidem, p. 212.

[37] Ibidem, p. 305s.

[38] Francisco Bosco. E livre será esse infortúnio, p. 135.

[39] Carlos Calado. A divina comédia dos Mutantes, p. 290.

[40] Ibidem, p. 293. Era o que sinalizava na ocasião Rita Lee.

[41] Ibidem, p. 307.

[42] Ibidem, p. 307.

[43] Ibidem, p. 309.

[44] Ibidem, p. 334.

[45] Ibidem, p. 15-16.

[46] Ibidem, p. 15.

[47] A canção vem interpretada maravilhosamente, banhando com todo sentimento.

[48] Chris Fuscaldo. Discobiografia Mutante, p. 165

[49] Ibidem, p. 169.

[50] Francisco Bosco. E livre será esse infortúnio, p. 140.

[51] Ibidem, p. 141.

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