26 Abril 2024
O Instituto Vladimir Herzog lança nesta terça-feira o relatório Fronteiras da Informação, que expõe um retrato de agressões e intimidações a comunicadores e jornalistas.
A reportagem é de Nicoly Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 23-04-2024.
Nos últimos dez anos, a Amazônia Legal testemunhou 230 casos de violência contra jornalistas. É como se nesse período, de janeiro a janeiro, houvesse pelo menos dois registros desse tipo de agressão. Na prática, é uma forma de intimidação que comunicadores da região sofrem por cobrirem o garimpo ilegal, a exploração madeireira, a expansão agrícola descontrolada, o narcotráfico e os crimes de feminicídio e violência de gênero, entre outros assuntos.
Pense no caso da cobertura do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima. A crise humanitária já era evidente quando uma comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarcou em Boa Vista e na própria TIY em socorro aos indígenas. Ao chegarem no Estado, descobriram uma complexa trama que envolve os campos político e econômico. Acabar com a extração do ouro não seria tão simples, como de fato ainda persiste.
“Fazer a cobertura desse assunto é delicado, pois grande parte da economia do Estado gira em torno do garimpo. A gente percebe que as pessoas à nossa volta, no dia a dia, são ligadas direta ou indiretamente a alguém que pratica essa atividade criminosa”, relatou o jornalista Felipe Medeiros e que faz cobertura multimídia para agências e jornais como freelancer e é colaborador da Amazônia Real. A extração ilegal de ouro já recebeu demonstrações públicas de apoio do governador Antônio Denarium (PP).
Medeiros é um dos profissionais de comunicação citados no documento Fronteiras da Informação – Relatório sobre jornalismo e violência na Amazônia, produzido pelo Instituto Vladimir Herzog e que será lançado em evento aberto nesta terça-feira (23), na Universidade Federal do Pará (UFPA). O estudo, que é um recorte da situação dos jornalistas amazônicos, registra e mapeia a situação dos jornalistas e comunicadores, atestando que a região vive uma crescente onda de conflitos e crimes que atingem diretamente os profissionais da imprensa.
O colaborador da Amazônia Real foi obrigado a adotar medidas de segurança após as coberturas da tragédia Yanomami. Sua cobertura, com foco no garimpo ilegal e no desmatamento no extremo norte do País, aborda assuntos delicados que costumam incomodar. Emily Costa, que já colaborou com a Amazônia Real e atuou em outros veículos, foi obrigada a sair de Roraima por estar se sentido exposta e desprotegida.
Não é à toa que esse cenário de violência e ameaças não se alterou radicalmente desde o brutal assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips em 2022, na região da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas. Exemplos não faltam para demonstrar o espírito conflagrado para quem exerce o jornalismo na região amazônica, aponta o relatório Fronteiras da Informação. Em 11 de novembro de 2022, a sede do jornal Rondônia ao Vivo foi metralhada.
Jornalistas, lideranças e outros defensores ambientais acabam sofrendo as consequências, como atestam casos mais recentes de conflitos, como Txai Suruí, que foi cercada por fazendeiros em maio do ano passado. Também em 2023 o comunicador Darlon Neres que denunciou a extração de madeira ilegal em Lago Grande, em Santarém (PA), e foi obrigado a deixar a Amazônia.
Por Estados da Amazônia Legal, o Pará se destaca como o mais violento, com 89 dos 230 casos registrados nos últimos dez anos. Está bem à frente do Amazonas (com 38 casos), de Mato Grosso (31) e Rondônia (20). Outro dado que impressiona no raio-X é o número de processos judiciais movidos contra jornalistas em 2022, ano da última eleição no Brasil. Foram 249 casos, um aumento de 14% em relação a 2018. Nesse quesito, Amazonas é o campeão com 268 ações na Justiça, seguido de Mato Grosso (129), Rondônia (128), Maranhão (107) e Pará (102).
No relatório referente à Amazônia Legal, o Instituto Vladimir Herzog apresenta recomendações ao Estado brasileiro e dicas de segurança aos profissionais de comunicação. De acordo com Giuliano Galli, coordenador de Jornalismo e Liberdade de Expressão do instituto, a atividade do jornalista da região Norte, sobretudo, é atravessada por várias questões, algumas diretas e outras indiretas.
Aval de Bolsonaro
O enfraquecimento das políticas de proteção ambiental durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), não só prejudicou o trabalho de fiscalização de agentes públicos, acrescenta Galli, como gerou “problemas sociais e econômicos gravíssimos, que exigem uma ação contundente e imediata do Estado brasileiro”.
Em janeiro, o Instituto Vladimir Herzog já havia lançado o Relatório da Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, em que denunciava a ação deliberada de destruir a imagem de jornalistas perante a opinião pública. “O ciclo de Bolsonaro na Presidência da República foi um período em que houve a institucionalização da violência contra jornalistas, por meio da Presidência da República, com a prática sistemática de descredibilizar a imprensa e atacar seus profissionais”, anotaram, na época, Samira de Castro, presidenta do instituto, e Maria José Braga, secretária de Relações Internacionais e editora do relatório.
O relatório de janeiro trouxe certo alento para os profissionais de mídia da região Norte. É que, no ano passado, a região voltou a ser a menos violenta para os jornalistas. Foram registrados 19 episódios de violência, a metade dos 38 casos ocorridos no ano anterior. O Pará foi o Estado mais violento da região, com 10 casos, 11 a menos do número registrado em 2022.
Elaborado anualmente a partir dos dados coletados pela Fenaj e pelos Sindicatos de Jornalistas nos Estados, o relatório coleta denúncias feitas pelas próprias vítimas da violência ou por outros jornalistas. Além disso, é realizada a compilação de notícias publicadas pelos veículos de comunicação.
Uma das lacunas do documento é a subnotificação, já que nem todos os casos são registrados, seja por medo dos profissionais de denunciarem às autoridades locais, seja por desconhecimento dos canais seguros para realizar essas denúncias, segundo observa Maria José Braga, presidente da Fenaj.
A jornalista Elaíze Farias, cofundadora da Amazônia Real, alvo de diversas ameaças desde que em 2013 ajudou a criar a agência, destaca que os jornalistas estão vulneráveis na região amazônica. Essa vulnerabilidade é agravada pela própria geografia do terreno, que demanda longos deslocamentos por áreas com pouca ou nenhuma estrutura de Estado.
“Os grupos de criminosos se espalharam, estão nas fronteiras, e, sobretudo, nas regiões onde estão quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Ao longo do rio Amazonas todo, no rio Solimões… É o chamado narcogarimpo”, afirmou Elaíze à jornalista Ariene Susuí, do povo Wapichana, que conduziu as entrevistas com quatro profissionais da Amazônia para o relatório do Vladimir Herzog. Na entrevista, Elaíze revelou já ter deixado de fazer certas apurações por questões de segurança e pelos altos riscos que a investigação demandaria, sobretudo porque os profissionais da Amazônia Real atuam e moram na região.
O alto grau de insegurança na região levou a jornalista a tomar algumas decisões pontuais e necessárias para salvaguardar sua proteção. “Tem o narcotráfico urbano, que a gente vê aqui no contexto de Manaus, que é muito presente em todos os bairros, pelo menos nos últimos dez anos. Acontece que essa presença vêm aumentando, segundo os estudos que estão sendo realizados. Os grupos de criminosos se espalharam e hoje estão nas fronteiras, e, sobretudo, nas regiões quilombolas, indígenas e de ribeirinhos”, explica.
Elaíze destaca a importância e a necessidade da adoção de medidas de segurança para a cobertura jornalística na Amazônia, como a elaboração de roteiros de viagem com previsão de locais para atendimentos de emergência.
Cerceamento judicial
Os casos de cerceamento à liberdade de imprensa por meio de ações judiciais cresceram 92,31% no último ano, segundo informou a Fenaj. O número saltou de 13 ações ou inquéritos registrados em 2022 para 25 em 2023. Já a violência contra os sindicatos e os sindicalistas passou de 3 para 11 casos.
Em 2015, em uma reportagem sobre a falta de água na cidade de Manaus, Elaíze Farias foi ameaçada de ser processada judicialmente pelo próprio órgão responsável pelo abastecimento das famílias. “Mandaram uma nota extrajudicial para a gente, ameaçando nos processar. Naquela época a gente nem tinha advogado, quem nos ajudou foi um advogado voluntário. Nós contestamos e fizemos até uma matéria sobre isso, mas eles nunca avançaram no processo“, comenta.
Em 2021, parte de uma reportagem que denunciava a troca de vacinas por ouro em Roraima, apurada pela Amazônia Real, em parceria com a Repórter Brasil, foi retirada do ar por uma decisão do 2º Juizado Cível de Boa Vista. A decisão recaiu sobre o texto publicado pela Repórter Brasil, que colocou uma tarja preta nos trechos censurados. A reportagem ficou sob censura judicial por 20 dias, até que a decisão fosse suspensa.
“‘Compro tudo’: ouro Yanomami é vendido livremente na rua do Ouro, em Boa Vista” denunciaram as jornalistas Maria Fernanda Ribeiro e Clara Britto sobre o envolvimento de uma servidora da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que fazia vacinação contra covid-19 nos Yanomami. A servidora foi flagrada pela reportagem negociando ouro na capital Boa Vista.
Elaíze Farias lembra que pelo menos outras três reportagens da Amazônia Real são alvo de ações judiciais e uma outra está fora do ar por decisão judicial. “Somos uma mídia independente e a matéria que foi publicada estava tudo certo, não tinha nada de errado, mas como tomou proporção grande, que até veículos de abrangência nacional deram, aí só processaram a gente”, explica. A reportagem, que foi censurada em outubro de 2022, é “Iate do Amazon Immersion estava sem autorização”.
A jornalista faz uma reflexão sobre o espaço que o jornalismo ocupa na Amazônia e lembra que a região enfrenta um processo de colonização continuada. “Geralmente por trás estão os grandes interesses econômicos, com apoio, omissão, ou incentivo das autoridades públicas, dos governos, dos políticos locais e regionais. Precisamos ampliar o olhar do que é legal e ilegal, pois até mesmo o que parece ser legal vem de processos ilegais”, aponta.
Depois dos quatro anos marcados por ataques a jornalistas, o governo do presidente Lula criou o Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas, sob as asas do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Antiga demanda da categoria, a possibilidade de ter um canal de confiança para fazer denúncias não basta. Segundo Rogério Christofoletti, representante da Universidade Federal de Santa Catarina no Observatório, é importante que haja a federalização dos crimes dessa natureza. O motivo é óbvio: muitas vezes, os jornalistas estão desprotegidos se continuarem a investigar em suas localidades.
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Violência contra jornalistas avança na Amazônia, apresenta relatório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU